sábado, 9 de dezembro de 2006

A partilha

"Se você me disser que parou de fumar, eu realmente irei acreditar que estou num universo alternativo"
"Não, eu não parei de fumar!"
"Ainda bem! Depois de tudo, depois que tudo acabou e você mudou...O cigarro foi a única recordação real sua, a fumaça saindo de seus lábios e de suas narinas"
"Lembra um trem!", ela tentou brincar.
"Sempre penso numa padaria, exatamente as 3 horas quando aquele cheiro de pão quentinho impregna a sala e te faz ter fome. Você e seu cigarro, vocês são isso. Aquela vontade de comer pão quente com manteiga"
"Você é pão com manteiga", ela saboreou aquelas palavras por alguns intantes, "engraçado você dizer que a única recordação real que ficou foi meu cigarro, era exatamente isso que você não gostava, não?"
"Verdade! Mas depois de tudo, depois do final e das recordações se apagando com o tempo. Você começou a parecer um românce barato, nossas brigas foram sumindo e tudo que restou foram boas transas, abraços colados, brincadeiras pela manhã. De repente, me vi num clipe romântico dos anos oitenta e teu cigarro ele me segurou no real. Ele ficava gritando que você não era só isso."
"Onde erramos?", ela falou baixinho.
"Nosso apartamento era minúsculo. Deveriamos ter comprado aquele casarão perto da Epitácio quando ele ficou vago. Custaria uma fortuna reformá-lo, mas valeria a pena. Teriamos quartos, salas, banheiros e muito o que limpar no domingo. Assim, não ficariamos esbarrando um no outro naquele minúsculo apartamento sala-cozinha-quarto e um banheiro que só cabia a privada e outra pessoa" e finalmente lamentou, "nunca tomamos banho juntos..."
"Do que você está falando, Fred?"
"Estou dizendo que o casamento dos meus avós duraram por causa do casarão que moravam em Pombal e todas as outras relaçãos antigamente. Casas amplas, essa é a solução."
Ela o olhou com desdem e continuou a colocar algumas coisas na caixa sem se preocupar se era dele ou dela.
"Casas mais amplas...", finalmente suspirou.
"Li isso numa dessas suas revistas, você nunca lê nada,não é? Nem suas revistas..."
"Você fala isso para vê se me pega, li cada revistinha dessas duas ou três vezes de cabo a rabo, sei cada reportagem, cada vírgula, cada enquete, cada propaganda e cada erro de digitação."
"Eram as horas intermináveis no banheiro!"
"Está sendo indelicado..."
"Pois é, essa maniazinha de ler no banheiro me matava. Morei com minha mãe e três irmãs, agüentei calcinha no registro, sanitário entupido com absorvente, ronco e o diabo a quatro, mas nunca ouvi falar de mulher com leitura no banheiro.", levantou as mãos para o céi e terminou a frase: "Isso é coisa de homem!"
"E você logo agora vai discutir nossos papéis na sociedade, Alfredo?"
"Não Letícia, só estou comentando que perdiamos muito tempo discutindo você dentro e eu fora, eu querendo entrar e você não querendo sair... Você poderia ler na cama..."
"E o jornal? E o futebol? E a novela? Sempre na cama era eu, você e a televisão. Alfredo, você lia com a televisão ligada, dormia com a televisão ligada, acordava com a televisão ligada e quando estava no banheiro a televisão estava ligada. Nosso casamento foi eu, você e ela... Foi o Zico na hora do sexo, a Malu Mader na hora do jantar, o Fátima Bernardes e seu maldito "boa noite" a todo momento..."
"Só a noite!", interrompeu.
"E esse apartamento minúsculo, onde você queria que eu curtisse um momento meu com minhas revistas?"
"Se você dissesse que lhe incomodava eu não daria mais "boa noite" a Fatinha"
"Não foi o "boa noite" a Fatinha, Alfredo, foi tudo... Você e sua televisão, você e sua falta de tempo, você e sua maldita família em primeiro lugar"
"Minha família? Vai meter minha mãe e minhas irmãs nessa história?"
"Custava ser um pouco mais flexivel, Alfredo Henrique? Natal com sua mãe e o ano novo com meus pais? Não, tinhamos que passar tudo com sua família, porque você era um homem de família. E eu?! Eu não tinha família"
"Eu convidei seus pais para passar o Natal conosco na casa da mamãe!"
"E você queria o que, Alfredo? Deslocar trinta pessoas por causa de sete?"
"Não falo dos seus irmãos, cunhados, tios, tias, avós e primos, Letícia. Falava do seu pai e sua mãe, só!"
"Minha famíla é grande, Alfredo. E quando você se casou comigo, casou-se com a família toda, mas você só queria a parte fácil."
"Você que se casou comigo e não se despregou da família, todo dia se trancava no banheiro e ligava para cada um antes de dormir. Faça-me o favor, Letícia!"
"Faça-me o favor você, Alfredo! E vamos logo separar esses livros antes que eu me arrependa de ter voltado para esse ovo"
"Ovo, mesmo! E no fundo eu ligava a televisão para ter alguém para ouvir, se você não ficasse tão trancada no banheiro lendo ou falando com seus irmãos, na hora do sexo sentisse prazer e tivesse o que conversar comigo, eu não teria ligado a televisão"
"Se você não tivesse ligada a televisão na hora do sexo, a noite, na hora do almoço e jantar, eu não teria me trancado no banheiro!"
"Vamos a partilha, deixe quieto!"
Permaneceram os dois em silêncio enquanto rasgavam algumas fotos, separavam CDs e livros, e olhavam velhas recordações:
"Naquele dia que lhe chamei de Fátima...", balbuciou, "eu não me referia aquela Fátima que conhecemos e sim a Fátima Bernades!"
"E isso muda alguma coisa, Fred?!"
"Talvez, Fátima sua amiga é tão próxima que você tanto deveria sentir ciúme como seria um ciúme socialmente aceito. Enquanto a Fátima Bernardes...Ela é bem casada, tem três filhos e está distante, seria normal um homem fantasiar, o que não é o meu caso, com uma celebridade."
"De toda forma, Alfredo, você estava pensando em outra durante nossa noite de amor. Sendo qualquer uma das Fátimas é ruim"
"O horário!"
"O que tem?"
"Naquela noite você me obrigou a "comparecer" com a televisão desligada e naquela hora, justamente naquela hora, era o momento da Fátima dizer "boa noite", então, meu cerebro se lembrou e na hora saiu "Fátima""
"Saiu: "Ó Fátima!"", e repetiu, ""Ó Fátima!!!", Alfredo! Não foi "boa noite", não foi "Fátima", foi "Ó FÁ-TI-MA", você estava fantasiando com outra e não importa se foi Fátima-narigão ou Fátima Bernardes, você estava fantasiando com outra. Fazia sexo comigo e desejava outra."
"Olhando por esse seu lado, eu entendo sua raiva, mas você não vê que é infundada?"
"Infundado ficará você se continuar esse assunto. Além disso, esse foi o motivo pelo qual deixamos de transar, o motivo pelo qual deixei de te amar foi outro!"
"Há vários motivos para a separação?"
"Claro, Alfredo. Falar o nome de outra durante nossa noite de amor foi só cinco porcento!"
"Há mais noventa e cinco porcento?"
"Exato!"
"O Natal e o ano novo, somando quantos porcento?"
"Quinze!"
"Ainda restam oitenta porcento?!?", exclamou em voz alta.
"Exato!"
"Você é uma mulherzinha rancorosa, hein, Letícia?"
"Uso do sanitário - as vezes que não deu descarga e as vezes que não baixou a tampa - 10%! Toalia molhada na cama, louça suja embaixo da cama, escovar os dentes na pia da cozinha e os peidos durante a noite mais 15%!"
"Deixar claro que a toália e escovar os dentes na pia eram culpa sua e os peidos eram involuntários, além disso, você ronca!"
"Você é um porco!"
"Você ronca que nem uma porca, fomos feitos um para o outron ão vÊ?", tentou abraça-la.
Ela o olhou com desdem, um desses olhares de desprezo que só certas mulheres são capazes de lançar, essas que se sentem superior ou melhor, sabem que são superior.
"A televisão mais 10%, as vezes que esqueceu nossos compromissos de casal mais 15%, nunca me notar mais 20% e os demais foram as coisas menores como me interromper quando estou falando, julgar-se mais inteligênte, dizer a todos que eu não entendo de pintura, música ou literatura e falar da nossa intimidade em festas de amigos"
"Você quer ouvir o que estragou nosso casamento? Da sua parte?"
"Diga!"
"Você é uma intolerante, uma pseudo-intelectual, uma compradora compulsiva com necessidade de atenção e se não bastasse isso tudo ainda precisa evitar o marido trancando-se no banheiro, você deve ser frígida, isso sim!", ela arregalou os olhos e ainda ousou levantar o dedo, mas ele continou sem piedade: "Você tinha tempo para todos, Letícia, menos para seu marido, você tinha assunto com todos, menos com seu marido, você só lia o resumo dos livros na revista e dizia que sabia de tudo e mentia dizendo que freqüêntava clube dos livros. Por falar em mentira, você me disse que doava sangue, nunca doou em três anos de casados, disse que sabia cozinhar, eu passei fome durante três anos, você disse que adorava animais, matou seis peixes em um mês, disse que era para sempre, deu notas aos nossos problemas!"
"Ah! Não seja infantil, Alfredo!"
"Não sou infântil, Letícia, apenas vivi três anos com uma mulher que vivia trancada num maldito banheiro num apartamento de dois cômodos e um deles ERA O BANHEIRO!"
Ela se levantou, pegou as chaves e bateu a porta, mais uma vez aquela partilha fora adiada. Alfredo pegou a foto do casal e colou em cima de um criado, talvez a solução não fosse uma casa maior e sim uma casa sem paredes, pensou e saiu batento, também, a porta.

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